Análise político-estratégica do ataque terrorista a Charlie Hebdo na França

Publicado: 2015-01-11   Clicks: 1743

    Tradução: Graça Salgueiro
     Além do esperado desdobramento midiático, o demencial ataque terrorista de um grupo jihadista contra os funcionários da revista de humor político      Charlie Hebdo em Paris, convida os dirigentes políticos e os estrategistas de segurança nacional nos países ocidentais a revisar as atuais relações políticas, econômicas, culturais e diplomáticas com o enigmático submundo muçulmano, porque depois dos ataques terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos, 11 de março na Espanha e 7 de julho em Londres, o salafismo mudou o mundo do século do século XXI para sempre. E apesar do sucedido daí em adiante, o problema ainda se vê como um assunto policial sem a importância estratégica de segurança nacional que lhe corresponde.
    O ponto de inflexão desta vez foi a reiterada publicação de caricaturas humorísticas acerca da concepção político-religiosa e filosófica do profeta Maomé. De imediato, o entorno jornalístico reagiu com justificada ira pela demencial ação islâmica contra os jornalistas e caricaturistas, porém muito poucos analistas se detiveram para averiguar por que isto ocorreu? De onde surgiu a idéia? Foi um fato isolado? Há outros objetivos? Procede da Al-Qaeda ou do Estado Islâmico (ISIS)? É uma resposta violenta a séculos de espoliação dos europeus às comunidades árabes? Estamos às portas do choque de civilizações estabelecido por Huntington? E mil dúvidas mais.
    A guisa de análise político-estratégica, abordaremos estas interrogações e trataremos de responder um a um: 
     1. Por que isto ocorreu? Há várias razões. Uma e a mais elementar é que a revista Charlie Hebdo especializada em humor político estava na mira dos jihadistas, e inclusive já havia sido alvo de um atentado terrorista três anos atrás. Outros argumentos com igual fundo, indicam que no mundo islâmico há incubado um ódio insepulto contra a Europa e, no caso da França, pelos séculos de espoliação e colonialismo sobre a Argélia e Tunis. E mais recentemente sobre a Síria e o Líbano, e outras regiões onde há muçulmanos. A isto soma-se o espúrio tratado secreto Sykes-Picot de 1916 que repartiu a seu bel prazer amplas regiões do Oriente Médio, re-desenhou fronteiras e afetou muitos interesses geo-políticos de comunidades locais.
 
     Para rematar, quando a ambição ocidental visualizou os efeitos da Primavera Árabe para se apropriar da riqueza líbia, o presidente francês Nicolás Sarkozy, que de passagem queria ocultar uma obscura contribuição de 50 milhões de dólares à sua campanha provenientes do regime de Khadaf, pressionou e encabeçou os bombardeios que destruíram a Líbia e hoje a têm a beira de ser um Estado falido, amedrontado por milicianos sunitas, tribos regionais e ânsias separatistas por todo lado.
     Quando se produziu o golpe militar em Mali, a França acudiu pressurosa com tropas para “restituir” a “democracia”, mas claro, com o interesse de se apropriar das riquezas malinenses e erradicar o salafismo jihadista que instalaram em uma república independente ao norte de Mali, os Tuareg, os mercenários de Khadaf que ficaram sem trabalho, o ramo local da Al-Qaeda e jihadistas internacionais que viajaram da Europa, Estados Unidos, China e Austrália à zona para apoiar as guerras conexas à Primavera Árabe.
      E como se faltasse outro elemento para complicar este xadrez de ressentimentos políticos e geo-políticos, o estouro da Primavera Árabe induziu milhares de jihadistas internacionais a viajar para a Síria, Egito, Tunis e Líbia, para se unir ao ISIS, à Al-Qaeda e às milícias sunitas, extremistas financiados em parte por xeques do Golfo Pérsico que não as querem ver em seus reinos e emirados, porém que as estimulam desde crianças com o wahabismo ou salafismo de predicação, que assim se diga o contrário, induz a alguns deles a dar o passo para o salafismo qutbista da guerra santa. É um limite fino, que os sunitas ultra-conservadores pérsicos não querem reconhecer, mas que com dupla moral apóiam.
      Nesse ambiente há sobradas razões para atacar os infiéis cristãos franceses, causadores desde a óptica da Umma sunita (califado único de adoração a Alá e aos ensinamentos de Maomé) de graves lesões contra a integridade islâmica extremista, portanto, a jihad contra qualquer objetivo ocidental é uma obrigação moral, principalmente neste caso em que os “infiéis” estavam profanando a sagrada semelhança do profeta.
     2. De onde surgiu a idéia? Embora ainda nenhum grupo tenha se atribuído publicamente a autoria do ato macabro, e os serviços de inteligência dos Estados Unidos assegurem que estes terroristas foram treinados pela Al-Qaeda no Yemen, é evidente que a idéia e a ordem do massacre saiu das mesquitas onde uns poucos, mas muito incisivos imanes ultra-conservadores sunitas, aproveitam a liberdade de expressão e de movimento que lhes permitem os países ocidentais, para alienar filhos de imigrantes muçulmanos chegados ao primeiro mundo para sobreviver das desgraças de pobreza, miséria, violência e opressão em seus povos de origem. Enviam-nos de regresso a seus países para treinar e aí cresce a cadeia do terror, quase impossível de controlar.
     Para tal, os imanes utilizam algumas razões históricas válidas atadas ao fundamentalismo religioso. Assim, convencem os futuros terroristas de que os ocidentais são causadores de muitas dessas desgraças então, a solução é a jihad, ou guerra santa contra infiéis, até que o islam seja universal, ao custo que seja, justificado neste caso pela posição satírica da revista parisiense contra os credos islâmicos extremistas.
     3. Foi um fato isolado? Não. A Al-Qaeda, ISIS e os jihadistas que pululam no Oriente Médio e no norte da África, ou que crescem exponencialmente no Ocidente, estão convencidos de que há um inimigo infiel poderoso, ao qual deve-se destruir mediante atos de terrorismo, vistos por eles como martírio.
      4. Há mais objetivos? O que foi dito antes indica que há mais objetivos similares nos países ocidentais, com a circunstância agravante de que milhares de jihadistas vão à Síria, Afeganistão, Paquistão, Líbia, Mali, Tunis, Sudão, etc., treinam, participam de ações terroristas ou em combates de guerrilhas, se aperfeiçoam na guerra e voltam a seus países de origem para formar mais e tecnicamente melhor jihadistas, com a vista posta em destruir o Ocidente ao preço que for.
     5. O mundo está às portas de um choque de civilizações? No futuro imediato ainda não, mas se continuar o incremento de ações terroristas contra civis ocidentais, com as dificuldades legais e físicas que os governos e os serviços de segurança experimentam para combater as células terroristas islâmicas, a óbvia reação de fundamentalistas cristãos e islamofóbicos que já apareceram nos Estados Unidos, Europa e Austrália, se multiplicará pelo mundo com conseqüências imprevisíveis.
     Em conclusão, o sangrento ataque jihadista contra a revista francesa Charlie Hebdo é parte de uma cadeia de ações e, por desgraça, prováveis ataques em outros lugares do mundo têm profundas raízes em ressentimentos de velha data contra os países ocidentais, desta vez por umas caricaturas ofensivas a seus olhos contra o profeta, porém sempre haverá uma justificação social, histórica, geo-política ou econômica para fazê-lo porque na mentalidade ultra-conservadora do salafismo jihadista, a única versão válida da vida humana é a dos sunitas ortodoxos, que concebem a violência como o meio para alcançar seus fins.
     Os serviços de inteligência ocidentais devem pôr maior ênfase na investigação acerca das atividades e planos dos imanes extremistas nas mesquitas e o desmascaramento de jihadistas incrustados nas comunidades imigrantes muçulmanas assentadas nos países ocidentais. Os muçulmanos que são líderes cívicos e religiosos dessas comunidades devem apoiar decididamente o esforço ocidental para combater o terrorismo e punir penalmente os salafistas incrustados. E os governos islâmicos moderados que governam o Oriente Médio, devem combater o terrorismo sem trégua, não só com repressão mas com abertura mental para outras concepções religiosas atenuadas pelo bom senso, sem cair no perigoso extremismo.
     Do contrário, serão cada vez mais e permanentes as ações terroristas perpetradas por jihadistas dispostos a morrer em nome de Alá, do Corão, da suna, do Cadiz e do ódio insepulto contra os poderes ocidentais que no passado espoliaram seu solo, levaram idéias contrárias ao extremismo muçulmano e os minimizaram como cultura.
     Obviamente, esta e qualquer ação terrorista merece repúdio total e exige punições exemplarizantes, porém um fenômeno terrorista nascido e incubado em raízes históricas, culturais, religiosas e de ódios insepultos não se soluciona com solidariedade, nem com manifestações de rechaço, pois entre outras coisas aos terroristas, sejam comunistas ou islâmicos, não lhes importam as críticas nem as manifestações populares de rechaço. Sua mente está enfocada em causar o impacto publicitário e golpear o adversário, o mais perto possível de seu coração político-estratégico.
      Então, a solução é muito mais complexa do que a ação policial ou militar no campo de batalha, ou na previsão de inteligência. Exige inteligência, ponderação, análise e ações atadas a objetivos político-estratégicos. Eis aí o desafio.
 
* Coronel Luis Alberto Villamarín Pulido
Analista de assuntos estratégicos - 
www.luisvillamarin.com 
 

Reciba gratis noticias, articulos y entrevistas

* indicates required

Maintained and Created by: { lv10 }

LuisVillamarin.com, 2015©